sábado, 1 de dezembro de 2007

Dilema Divino



Não precisa me perguntar. Eu já sei o que você está pensando. Eu já sei o que você quer saber. Mas também sei que não preciso te responder, já que sei inclusive porque você pergunta. Não tenho nada a ganhar (ou a perder) dizendo o que se passa em sua mente, sendo que você mesmo sabe o que pensa. Talvez algumas vezes prefira negar, mas sabe. E negar também não é errado. Colocar bordas em sua estrada de pensamentos. Talvez represá-los em sua boca. Talvez esconder suas idéias para si por motivos que você já deve saber que eu sei.
Ao mesmo tempo, para que motivo não dizer se eu sei? Simples, porque eu sei e seria repetir. Não precisa se repetir, então. Eu sei quantas vezes você pensa nisso também.
Quem sou eu... quem sou eu? Eu sou. O pai e o filho de mim mesmo. Ao começo e ao fim o começo e o fim. E isso é mais que eu poderia dizer do que não é em mim. O que eu não sei. Isso é o que não existe. E se o que não existe não é, não há o que não exista.
Eu mesmo existo? Se sou o começo e o fim, como posso existir se há apenas o meio? O começo já foi, é passado. O fim é o futuro. Se sou o começo e o fim então... então eu não existo.
Afinal, de que outra forma eu poderia ser o pai e o filho? Como eu poderia saber o que você pensa? Como seria eterno?
Não. Não posso acreditar. Então eu não existo! Então qual é o meu propósito se o que sei me nega?
Mas espere... Não precisa perguntar. Eu já sei o que você está pensando.

Vento



Difícil esquecer o que me aconteceu esses dias atras, amigo. Nem sei como começo a te contar. Acho melhor começar pelo início.
Era alguma coisa em torno de dez e meia da noite, não sei bem ao certo. Não levei relógio. Faz algo como duas semanas. Como estava em casa cansado de ficar entre quatro paredes botei meus sapatos e fui dar uma volta na quadra. Havia chovido umas horas antes, então o tempo estava fresco.
Depois de uns cinco minutos de caminhada resolvi sentar-me num dos bancos daquela praça que tem um lago no centro. A iluminação estava razoável o bastante para ver tanto o céu quanto o fim da rua. Foi então que uma leve brisa morna começou a soprar. Mas se a noite estava fresca, de onde vinha aquela brisa, me perguntei. Será que o calor do dia resultou em um mormaço ou coisa assim? Mas sabe, foi o que pensei na hora. Nunca que eu ia imaginar aquilo.
Juro que depois disso eu ouvi meu nome. Eu estava sentado, apoiado com as mãos no banco deixando minha cabeça pender para trás, para ver melhor o céu e sentir melhor o vento, e ouvi meu nome. Como um suspiro aos meus ouvidos. Baixo e sinistro... longo e calmo.
Primeiro procurei quem tinha falado aquilo, mas não tinha ninguém ali, e juro por Deus que o suspiro tinha falado ao pé do meu ouvido. Aquilo me arrepiou até o último fio de cabelo.
Pois não é que enquanto eu estava ali, parado com minha cara de medo, a voz falou o meu nome de novo? Dessa vez não tive dúvida. Eu estava olhando para o lado certo e juro para você que não havia ninguém ali.
Levantei num pulo mas não consegui pensar em nada para falar. Só fiquei em pé, com os braços armados esperando algum sinal para sair correndo. O vento morno continuou soprando esse tempo todo. Mas o mais incrível vem agora. Senti aquele vento nos meus cabelos e não é que era como uma mão com cinco dedos que passava pela minha cabeça? E falou o meu nome de novo!
Aquilo foi o suficiente para mim. Saí correndo na hora.
Quando estava na metade da quadra de cima correndo feito o diabo corre da cruz, ouvi um som de vento balançar as árvores do parque e uma voz, como o assobio do vento, gritou o meu nome de novo. Nunca na vida corri tanto.
Hoje eu sei que foi exagero meu. Isso acontece comigo quase todos os dias quando passo no parque. No começo eu ficava assustado, mas hoje para mim é bem comum. Até já respondo a voz. Como te disse, agora é bem comum para mim conversar com o vento.

Crianças



A floresta de pinheiros ondulava suavemente sob o comando do vento frio do sul. As montanhas cobertas pelas coníferas oscilantes pareciam ondas em um mar azul esverdeado. A lua emanava uma luz fraca que pelas nuvens passava um azul profundo que tingia as árvores de forma sutil.
Então o vento foi ficando ainda mais rápido, até que o farfalhar de galhos se fez ensurdecedor. O vento assobiava entre os troncos vacilantes.
Então algo se levantou. Algo se ergueu. Uma coisa linda. Uma criança então saiu da terra, segurando um daqueles pinheiros como seu brinquedo. Depois dela outra, e mais outra e então todas as árvores deram lugar a uma multidão de crianças rindo. E começaram a brincar. E começaram a gargalhar. E correram por toda a noite.
Foi lindo.

Uma Lição de Vida



Acordou já no volante do carro enquanto ele descia a maldita ladeira. Chacoalhando e pulando feito um potro selvagem, o carro ia passando pelas árvores deixando atras de si um rastro de destruição. Para tanto grande parte da integridade do carro era comprometida a cada pancada em pedra ou tronco que ocorria no caminho.
Botou as mãos no volante e segurou com força. Não lembrava nem como foi parar ali, mas sabia que se não controlasse aquele automóvel, estaria morto. Moveu o volante mas não conseguiu mudar o trajeto do bólido. Para ser mais claro, com tantos solavancos o carro ficava quase que mais tempo no ar que no chão. Não tendo outra escolha, abriu a porta e saltou para fora do carro. Alguns galhos e pedras machucaram seu corpo, mas ver o carro colidindo com uma imensa rocha que esperava paciente no fim da ladeira, fez os ferimentos doerem menos. O carro se espatifou como um ovo que cai ao chão.
Sem entender como aconteceu aquilo tudo, foi até o carro cambaleando. E conforme foi andando até o carro percebeu que era o seu carro . O carro que comprara para esta viagem. Lembrou-se que era um vendedor de uma loja de departamentos. Lembrou-se que sua esposa era uma mulher carinhosa e linda, mas que não viria na viajem para deixar que ele mesmo consertasse seu relacionamento com sua pequena e doce filha de cinco anos, triste porque o pai faltou ao seu recital de balé.
Deus, lembrou-se que esta viagem era exatamente para ver uma companhiade balé que se apresentava na capital. Uma surpresa para sua doce filha de cinco anos, que estava no carro. Como foi que pôde? Como pôde ser que ele dormiu ao volante? Não fazia sentido. Era uma viagem curta. Não podia ter-se cansado tanto.
Mas havia passado a noite acordado para fechar o balanço anual da loja a tempo de viajar. Era isso. Segunda noite seguida sem dormir. Matou sua filha. Parou a alguns metros do carro destruído. Não conseguia mais andar. Não conseguia mais parar de chorar. Via o líquido vermelho escorrer pelo canto de uma das portas do carro. Aquele pedaço de inferno. Aquele mausoléu sobre rodas. O caixão de sua filha. Nunca mais dirigiu na vida. Nunca mais passou uma noite em claro. Nem mesmo beber bebeu mais. Viveu cada dia de sua vida com o propósito de honrar a sorte que teve. A sorte de sua filha ter saído do carro instantes antes do pai ter acordado. Sorte por ela não ter se machucado gravemente e sorte pelo líquido vermelho ser apenas algum fluido do motor, que agora ocupava o lugar dos passageiros.
Bem, nunca mais não é exatamente um tempo longo. Alguns meses depois faltou em outro recital de sua filha. Mas dessa vez limitou-se a comprar-lhe uma boneca vestida de bailarina.
Algumas lições não são aprendidas exatamente como são ensinadas.

Longe de Casa



O carro enguiçou logo naquele trecho escuro de estrada entre uma cidade pequena e lugar nenhum. Não havia nada por ali. Nada visível. Era uma daquelas noites de lua nova que não se enxerga um palmo diante do nariz, e logo a bateria do carro tinha que arriar. O motorista olhou para o painel apagado e pela janela do carro. Lá fora estava escuro, e um leve reflexo de si mesmo embaralhava-se com a imagem de um campo negro e um céu de azul escuro como jamais viu.
Destrancou a porta e saiu. Depois de suspirar olhando para aquele nada que o cercava, andou até o porta-malas e o abriu. Lá dentro tinha, em algum lugar entre a chave de roda, algumas tralhas de praia e um estepe, uma lanterna. Talvez até mesmo a pilha não tivesse vazado ou esgotado de esperar pelo uso. Mexeu e mexeu na bagunça até que tocou em algo emborrachado. Escapou-lhe ao toque. Continuou então a busca, na direção em que sentiu a lanterna. Porém, um som na mata acabou por assustar-lhe e trazer sua atenção.
Parou gelado olhando fixo na direção do som. Mas não se repetiu. Apenas uma cigarra distante lembrava que era verão.
Voltou a buscar a lanterna. Foi então que encontrou. E assim que puxou, ouviu um som de algo deslizando e o peso da lanterna ficou mais leve. Só teve tempo de impedir que uma das duas pilhas grandes caísse do interior da lanterna. Amaldiçoou sua sorte. Agora tinha de encontrar o fundo da lanterna e uma pilha grande. Encontrou uma luva de couro, uma sombrinha imensa de praia (essa ele encontrou umas três vezes até que se encheu e jogou pra fora do porta-malas), uma sacola cheia de conchinhas e areia salgada, uma garrafa de plástico e enfim uma pilha grande. Colocou na lanterna. Deixou então a lanterna no bolso e buscou pelo fundo da lanterna usando as duas mãos.
Foi entre o som de uma garrafa de café solúvel batendo no cabo de madeira da maldita sombrinha e um saco vazio de batata frita sendo amassado que reparou no som da mata novamente. Paralisou de novo. Não é que dessa vez ouviu um som de respiração funda logo depois? As mãos pararam de buscar, tremendo dentro do porta-malas. Foi então que uma tampinha de plástico rolou até sua mão. Era o fundo da lanterna. Aquela peça traiçoeira reservou a melhor hora para se revelar. Parado e suando frio, pegou a peça com seus dedos tensos. Segurou firme e lentamente levou até o bolso. Ainda sem se virar atarraxou a parte que faltava em sua lanterna.
Este era o momento. Devia virar-se rápido contra seja-lá-o-que e lançar o feixe de luz contra sua presença. Imaginava ser um cachorro do mato, pelo tipo do som. Segurou a lanterna firme, encontrou o botão de ligar e num movimento desajeitado saltou rodando voltando-se e iluminando a presença que lhe causara temor.
Que surpresa... que inusitada surpresa. Era uma garota de uns dezessete anos, aproximadamente, de longos cabelos claros e completamente nua.
Assustado deixou o queixo cair, boquiaberto diante da delgada nudez da garota. E ela, ali desprovida de qualquer pudor, olhou para ele assustada também. A lanterna iluminou seu corpo branco até ofuscar a vista do motorista, acostumada às trevas daquela noite. Espremendo os olhos notou que um dos braços da garota estava se levantando para apontar para ele. Perguntou o que ela fazia ali, se estava ferida e coisas assim, mas ela ficou calada.
Seu impulso era de protegê-la. Tirou sua camiseta e vestiu a garota. Deixou-a sentar-se no banco do passageiro e perguntou seu nome. Ela ainda estava calada, até então. Foi quando os olhos do homem se acostumaram a claridade de sua pele que ele viu o quão linda era a garota. Novamente boquiaberto, ficou em silêncio, contemplando aquela pintura que era seu rosto. Uma aquarela... não, uma delicada escultura em gesso. Bah, não sabia definir. Era algo inédito. E sua voz se fez ouvir pela primeira vez. Foi um suspiro suave, como um gemido baixo de quem chorou muito mas está melhor. O homem não pode resistir aquele som tão frágil. Abraçou carinhosamente a garota, dizendo baixinho que estava tudo bem. Fez-lhe um carinho singelo, com um afeto que nem sabia que existia em seu coração, enquanto o cheiro suave da garota lhe impregnava as narinas sutilmente, como uma brisa que sopra numa sala abafada. Não imaginava melhor lugar para se estar que não ali, acalentando aquela figura angelical.
E o chorinho baixo dela foi se transformando em uma voz que dizia algo indefinível... talvez seu nome, ou talvez o que lhe afligia... Não sabia o homem ao certo. Ficou em absoluto silêncio, concentrado com cada célula de seu corpo a cada ruído que vinha da garota. Logo se viu como que ouvindo uma canção esquecida de sua infância. Emerso no mundo daquela voz. Sua vista e seu corpo relaxando profundamente, até um estado de contemplação como nunca experimentara. Então a voz se fez audível, ainda que de forma muito sutil, e disse que precisava gritar.
Na manhã seguinte os policiais encontraram o corpo de um homem, transfigurado de horror, perto de um carro parado e com poças de sangue perto de seus ouvidos. Nunca descobriram a causa de sua morte. Nunca descobriram sobre a sereia que assim como sua infeliz vítima, estava muito longe de casa.

O Herege





"Sala da tortura, da purificação
Você será julgado pela Santa
Inquisição
Negra é sua alma como negra é sua magia
Você foi condenado pelo
crime de heresia..."
O Herege - Grimório
E tudo começou muitos anos atras quando ele disse no sermão que "o senhor perdoa a todos, pois sua misericórdia é divina. E para isso não depende de igrejas ou rezas, apenas de arrependimento e sinceridade". A venda de indulgências era notória na maioria das paróquias em todo continente, e as palavras do padre chegaram aos ouvidos do arcebispo, que não ficou nada satisfeito. Enviou então uma comissão de inquisidores para averiguar a história.
Chegaram de manhã, quando a neblina da noite ainda estava baixa nos campos. Eram sete homens. Quatro inquisidores e três cavaleiros templários. Cruzaram a cidade silenciosa, e chegaram à igreja. Chamaram pelo padre, cujo nome não posso revelar devido à ordem de esquecimento à qual ele foi condenado. O herege então abriu as portas do lugar. Já estava vestido, e preparava-se para sair quando chegaram os homens da igreja. Deixaram os cavalos no poste e entraram para conversar com o padre. Instruíram então o homem a mudar seus temas. "Não há interesse de ninguém em termos problemas na sua paróquia, padre. Não há razão para termos um distúrbio na ordem das coisas. Vá até seu povo e diga-lhes apenas o que está escrito no seu livro. O único caminho que salva é o da Santa Igreja, e nenhum outro." Saíram então de lá, com a promessa do padre de "não mentir para o povo, nem para a igreja".
Não passou um mês e meio e um dos espiões da igreja reportou reincidência na rebeldia do padre, desta vez no que se referia a existência de demônios. "Não há demônios na terra. Há apenas no coração dos homens. Devemos combater o demônio dentro de nós para tornar então a terra, num paraíso". Mais uma vez bateu de frente com a igreja e seus exorcismos mirabolantes e dramáticos, realizados muitas vezes em filhos epilépticos de homens ricos. Hoje chamaríamos a "marca de salvação" de lobotomia. Desta vez o arcebispo não se conteve e ordenou que uma comissão de inquisidores fosse formada para julgar o caso. Então rumaram para a paróquia do herege, uma comissão de vinte e cinco inquisidores, trinta templários e o próprio arcebispo, que desejava mais que tudo, ver o pecador se redimir em chamas.
Tomaram a igreja do padre, montaram uma reunião forjada e viram em suas cartas marcadas que "era preciso tirar a verdade do padre". Dois dias e duas noites na sala de tortura transformaram o padre em um farrapo humano. Não havia como ele não confessar que havia tido visões. Ele revelou onde estavam pergaminhos que seriam supostamente entregues a ele por anjos. Pergaminhos que ensinavam palavras novas aos homens. Palavras de libertação e verdade, que de forma alguma iam de encontro com a palavra do livro sagrado. Claro que uma vistoria mais minuciosa por parte dos inquisidores revelou serem os anjos servos de lúcifer e as palavras mentiras muito bem contadas pelo senhor das mentiras. Tendo então sido verificada e confirmada a relação do padre com o mal, seria administrada a penitência máxima: a purificação pelo fogo.
De dentro da igreja já se podia escutar a multidão gritando que era hora de queimar o herege. Foi então amarrado na pira dos penitentes. Lá ele expiaria seus pecados.
Olhava ainda para o céu, o excomungado, quando a tocha caiu entre os galhos molhados de óleo. O fogo subiu rápido pelo seu corpo, e se enredou por ele como uma serpente frenética. O povo gritou, zurrou e assobiou enquanto o herege queimou, até que nada mais restou além do cheiro horrendo de carne e osso queimados. A multidão então parou a algazarra, e murmuravam comentando o acontecido, enquanto voltavam para suas casas. Um novo padre seria designado para a paróquia e assumiria em menos de uma semana, se não houvesse a grande catástrofe.
No dia seguinte da queima do herege, uma chuva torrencial impediu que os inquisidores, o arcebispo e os templários saíssem da localidade. Choveu pesado e forte até a madrugada seguinte. Durante a tempestade não se podia ouvir nada além do uivo do vento. Não sei porque sobrevivi, nem como pereceram os outros nas outras casas, mas aonde eu estava foi tudo muito rápido. As portas e janelas estouraram e junto do grito do vento e da água da chuva, entraram figuras sombrias como anjos da morte, montados em cavalos de sombras e fogo. Os templários que estavam em minha casa foram cortados diante de meus olhos juvenis. Seus corpos dilacerados caiam sobre os tapetes um após o outro. Os cinco cavaleiros e minha família inteira pereceram em alguns segundos, diante de mim. Depois de destruir todos os vivos em minha casa, nem me olharam e saíram por onde vieram, tão rápido quanto chegaram.
Somente eu e o recém nascido da casa do vizinho vivemos para ver o dia seguinte. Não havíamos nem sido batizados ainda. Hoje sou um homem sem religião. Um escriba sem histórias. Caminho por um mundo irreal construído sobre mentiras e verdades tão frágeis quanto o papel que uso para escrever. Mas quando me perguntam sobre o fogo e a tempestade, eu sempre conto essa história... na esperança de algum dia encontrar alguém que saiba a verdade por trás do que vi acontecer na minha cidade natal. Ainda vejo os seres de sombra montados em fogo, quando estou sozinho. Eles nunca falam nada, nem olham para mim, mas estão sempre lá. Será que algum dia eles me dirão alguma coisa?

A Fogueira


A fogueira crepitava enquanto a lenha se tornava um brilho forte. As chamas balançavam num vaivém lento, como uma valsa de fim de noite. E do meio das chamas as brasas que se desprendiam voavam como fadas do fogo a cada sutil brisa da madrugada. Sentados à beira do fogo não falávamos nada. A noite já tivera barulho o bastante e mesmo sendo tão jovens já começávamos a aprender o valor do silêncio.
Os rostos iluminados pelo fogo revelavam amigos, colegas e conhecidos. Cada qual com seu mundo expresso no rosto. Os cansados e suas olheiras fundas e olhos semicerrados. Os solitários e seu tédio electo. Os namorados e suas faces que se tocam. Os bêbados e seu sono etílico. Os menores olhando para os lados em busca de aprovação. Os mais velhos preocupados com a Segunda-feira. Os faladores e sua inquietação desconfortável. E por último o silencioso observador e um sorriso de fim de festa. De quem está em companhia boa, de quem tem dezoito anos..
O tempo passou aquela madrugada. E não parou mais. O fogo ao redor do qual tantos amigos se aqueciam no amanhecer frio de inverno já se apagou. Talvez outras chamas estejam acesas agora e eles continuem com seus rostos amigos iluminados pela luz viva que se desprende da matéria que compõe este mundo, e que extirpando da cor e da solidez dos seus combustíveis cria a luz. E esta luz que se apagará terá, para cada um que ao seu redor se reúne, um significado singular.
Mas a fogueira daquela noite quase tocava minha alma com seu calor, enquanto as fadas dançavam rindo de nossa presença, e desapareciam no ar, felizes por suas vidas curtas e quentes que duraram apenas alguns instantes, mas que não viram ninguém triste do nascimento até a morte. Porque aquela noite nós esperávamos o sol nascer. Um fogo mais duradouro, que verá bem mais que nós, mas que nunca saberá como é estar na companhia de bons amigos ao redor de uma fogueira, numa noite fria.

A Aranha



Hoje a aranha de estimação que pendia entre o monitor e a estante da sala apareceu morta. Sua teia estava completamente vazia. Ficou assim por toda a semana em que o aracnídeo me fez companhia nas solitárias horas de almoço e nas noites insones de digitação.
Uma vez tentei jogar um pernilongo que peguei, na teia dela. Passou direto. Também deciidi respeitar o orgulho do predador e esqueci da caridade.
A teia ficou vazia, e o tempo passou. Pacientemente a aranha ficou ali no meio da teia, esperando e esperando algum inseto ficar preso. Mas inseto algum ficou preso. A teia era invisível. A aranha parecia presa ao éter, meditando sua fome. Bem, imaginei que era essa a vida de uma aranha. Como um sniper pacientemente espera a linha de visão se limpar de obstáculos, a aranha espera o erro do inseto para enredá-lo.
Hoje ela estava morta caida em cima do pote vazio de batata Pringles, onde guardo uma bala de goma que ganhei a tres meses. Assim como a bala esperava ser comida, a aranha esperava sua comida. Hoje as duas estão perto. A aranha não precisa mais esperar pacientemente seus insetos, e eu lembrei que guardei ali minha bala de goma.


quinta-feira, 4 de outubro de 2007

A Bruxa da Floresta Maldita

Ana Caroline estava andando tranqüilamente pelos arredores de sua casa. Não conseguia entender como veio parar no meio dessa floresta maldita. Num instante estava brincando perto do pé de romã e então, quando viu algum bichinho se mexendo nos arbustos e foi ver, caiu por um barranco. No momento seguinte estava nessa escura formação vegetal.

Suas pequenas mãos infantis bateram a sujeira de seu vestido branco. Ela era como um solitário floco de neve que cai pela noite escura, estando tão pura na floresta de trevas e desolação. Não era possível ver o céu, mas apenas a luz que era refletida pelas folhas e troncos. Uma luz opaca e estagnada tocava a névoa tênue que cobria a vista. Devia ser dia, mas estava escuro. Não era natural. Era estranho.

Sons de distâncias imprecisas ecoavam pelos troncos e galhos. Insetos de cores nunca vistas faziam as flores murchas das árvores parecerem ainda mais desbotadas. Uma árvore contorcida fez a menina lembrar de sua mãe. A planta tinha um tronco baixo e largo, como o corpo cansado da boa mãe da menina. Os galhos eram como os braços desesperados da velha senhora, que buscavam tanto o chão quanto alguma ajuda. Um dos galhos chegava a tocar o chão, enegrecido e retorcido tocando o chão de terra preta e úmida. O outro apontava para a menina, com galhos como dedos que buscam ajuda, ou talvez mandar a menina para longe da figura sombria que parecia precipitar-se sobre ela. Uma imensa árvore com feições macabras.

A floresta e suas formas deu pressa aos pequenos pés da menina, que correu por alguns minutos, saltando raízes expostas e desviando como podia de galhos baixos e traiçoeiros. Uma aranha observou de longe, caminhando lentamente até sua mosca.

Adiante, a menina vê um brilho estranho, como um metal ou uma reflexão de água cristalina sob um sol de entardecer. Ela vai inocentemente até próxima do ponto, mas no caminho escuta um sussurro áspero.

-Hei, garota. Não vá até lá.

Assustada com a silhueta bizarra do ser que proferiu tal conselho, a menina corre ainda mais rápido até a luz, e quando salta um arbusto mais baixo se vê em uma clareira.

As árvores formavam um círculo ao redor de uma espécie de jardim púrpura. Folhas e flores da cor funesta carpetavam o lugar. Borboletas negras voavam pelo ar, como que roubando a luz do céu, impedindo de se ver se era dia ou noite. E no centro desta clareira estava o guerreiro em uma armadura completa, sem quase nenhuma parte de seu corpo exposta. Era brilhante e sua luz não tinha explicação ou origem aparente. Refletia como que do nada. E na mão havia uma espada cruenta embebida em sangue negro.

A menina estancou ao se deparar com a cena, e o guerreiro ficou por instantes paralisado contemplando aquela garotinha de branco ali, parada diante dele. Mas apenas por instantes. Quase que imediatamente ele começou a correr na direção dela. Assustada, Caroline deu meia volta e desembestou-se a correr pelo mesmo caminho que veio. E a voz que lhe sussurrara um aviso a pouco, agora lhe acompanhava em sua carreira desesperada. Sob uma luz mais intensa foi possível contemplar as patas de cabra, o corpo peludo e os chifres do sátiro. E correndo continuou a advertir a menina.

-Eu lhe avisei para não irdes! Agora corramos. Temos de buscar os seres da floresta para que nos acudam.

As folhas farfalhavam aos vôos enquanto os dois se desembestaram pela mata. O sátiro então apontou “por aqui” para a menina e eles viraram por uma enorme rocha. Depararam-se então com nada menos que um imenso basilisco gigante, com sua língua bifurcada chicoteando o ar. A menina se assustou, mas a um sinal do sátiro a criatura deu passagem aos dois perseguidos e ficou de frente para a curva.

Instantes depois o cavaleiro surgiu na esquina da rocha e parou, surpreso com o tamanho do lagarto. Tinha qualquer coisa entre um metro e cinqüenta de altura estando nas quatro patas, por bons oito metros de comprimento da cabeça ao fim da cauda. Um corpo coberto de escamas cor de cobre e dois olhos como brasas formavam a imagem bestial do réptil rastejante.

E engajou-se em combate com a fera, o guerreiro brutal. Aproveitando a distração, o sátiro e a garotinha reiniciaram a fuga. Alguns metros depois ouviram um guinchar de morte vir da distância deixada para trás e concluiram que sua distração havia terminado. Ainda correram muito até que novamente o sátiro apontou outro “por ali” e dessa vez viraram a direita por um barranco gramado entre dois chorões centenários.

O guerreiro ferido na perna por uma boa dentada ainda tinha a força e determinação para passar pelo mesmo ponto poucos segundos depois dos fugitivos. E entre dois barrancos que o flanqueavam se viu cercado por pequenos répteis bípedes armados de lanças e facas. Do alto dos dois barrancos paralelos que davam às criaturas a generosa vantagem do nível geográfico superior, iniciaram ataques múltiplos e covardes à qualquer parte desprotegida da armadura do guerreiro, que urrava de dor. E entre urros e gritos selvagens foi tentando abater as criaturas, que pareciam não ter fim em sua quantidade. No fim do corredor sangrento que se formou, a menina se virava assustada antes de continuar acompanhando o sátiro em sua fuga alucinada.

Depois de abater as dezenas que até pareciam centenas de criaturas que visavam sua vida, o perseguidor implacável continuou sua empreitada.

Triste foi seu fim, instantes depois, quando a última das criaturas do trajeto traçado pelo sátiro surgiu diante de si. Um imenso gorila vermelho com um rosto desfigurado e imensas asas de morcego guardava a trilha na floresta. Encurralados por uma densa vegetação tanto o sátiro quanto a pobre Aninha contemplaram uma injusta batalha.

O primeiro golpe do guerreiro foi uma veloz cutilada contra o abdome do símio, que depois de um ruído de dor quase humano disparou um safanão contra a cabeça do guerreiro. O som da armadura amassando e dos ossos se despedaçando foi surdo. Um calafrio percorreu a espinha da menina, e até mesmo o sátiro pareceu sentir pena do infeliz espadachim. Quando estava se levantando recebeu um pisão sumário do primata descomunal e ali ficou caído enquanto recebia outra dezena de pisões em seu corpo sem vida.

Depois de exprimir os órgãos do guerreiro para fora de sua surrada armadura, o gorila se abaixou e começou a brincar com os restos do infeliz.

O sátiro então virou-se para a menina e disse:

-Você está na Floresta dos Desesperados, pequena Caroline. Não adianta se perguntar como veio parar aqui, como vai sair e nem como sei seu nome. Apenas me ouça atentamente. Jamais sairás daqui, mas tens a sorte de ter-me por guia. Jamais deixarei que algum destes ímpios lhe toque a fronte tão pura, ou sequer um de seus dourados fios de cabelo. Morrerei se preciso para evitar tal sacrilégio. Agora venha comigo. Devemos sair antes que o Taná´ri se dê por conta que você é humana. A coisa que eles mais odeiam é humano.

Desapareceram pela mata, então. E por tempos imemoriais os gnomos e fadas sussurram as histórias da Floresta que contam da menina-bruxa. Ela atrai os aventureiros e os perdidos que, na vã tentativa de salvá-la, conhecem os horrores indescritíveis ocultos nas sombras da Floresta dos Desesperados.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Cinzas às cinzas

Agradecer por estar vivo


Agradecer por este corpo perfeito


Agradecer por ser tudo


Agradecer pelo que bate no peito




Agradeço ao Pai


Do fundo da alma


Ter-me dado o amor


E me tomado a calma.



sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Muro

Muro, ideologia, religião, raça, dinheiro, nacionalidade, parede, grade, morte, sexo, paixão, ódio, nome, gosto, estética, necessidade, cova, cerca, placa, cargo, classe, palavra, carne, amigo ,tempo, mundo, vidro, fogo, medo, orgulho, posse, compromisso, inimigo, distância ou seja qual for a barreira, aqui não existe.

Só o amor.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Onde os Espelhos não Mentem

Olhou para o espelho por muito tempo. Sua vista começou a se tornar confusa de tanto tempo que fitou o vidro de se ver. Esperava encontrar alguém conhecido mas lá estava aquela pessoa estranha. Olhando para ela como quem a conhece, mas quem era aquela pessoa? Quer dizer, devia ser ela, já que se movia da mesma forma... já que estava no espelho... mas não era ela.
A luz do banheiro mudou e os sons da rua desapareceram. Apoiou as mãos na pia no mesmo instante que a imagem o fez. E então tocou seus lábios no mesmo instante que a pessoa no espelho. Sem saber quem era aquela pessoa.
Estranho demais, mas o olhar no espelho parecia conhecê-la, mas ela não sabia quem estava ali. Era angustiante demais.
Foi então que o sol se pôs e a luz foi embora. Foi então que percebeu que sem aquela luz ela mesma não existia, não podia se ver ou saber onde começava e onde terminava. Foi então que percebeu que era ela o reflexo no espelho.
A luz então se apagou. A estranha foi embora sem jamais notar um rápido instante de agonia em seu reflexo, que desapareceu de forma tão cotidiana.

Fim do Tempo

E ali estavam os dois, à beira do fim do tempo. Nada mais fazia sentido além daquele abismo. Ele já havia ido o mais longe que podia, mas ela... ela ainda queria mais. O mundo e as suas formas já havia desaparecido. O que... anos atras? Difícil saber estando assim tão perto do fim do tempo.
Estranhamente se podia notar que todos os tempos acabavam ali. Tanto o passado quanto o futuro se encontravam ali. E o presente era o único que ainda parecia resistir. Um presente nebuloso, sem passado e sem futuro. Uma dúvida corroendo os dois. O que há além do fim do tempo?
Uma voz então se fez ouvir, mas o que ela dizia era esquecido assim que dito, como se fosse a tanto tempo que nem mesmo as palavras eram as mesmas mais.
Ela então pisou naquele imenso vazio. Urgente como todo homem quando se trata de sua mulher, ele também foi. Seguiram para aquele lapso. E lá então encontraram a resposta final. O fim do tempo e todas as coisas que existiram em suas faces. Seus ecos e suas sombras. Suas formas e seus volumes. Tudo em um instante eterno.
Desapareceram para sempre no sempre que deixou de existir. Então foi o fim do tempo e ali mesmo o para sempre acabou para os dois.
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http://frankfrazetta.org/

terça-feira, 25 de setembro de 2007

O Pequeno Bob

A cidade era como um modelo de gesso. Não parecia real. Tudo era branco. Calcário. A luz leste fazia com que meu olho esquerdo se fechasse por excesso de luz. Doía a vista. As ruas eram de um branco amarelado, de pedras compostas em mosaico. Um desenho anárquico agrupado pelo cimento de brancura impressionante.
E um menino descia a rua. Vento em seus cabelos negros e soprando sua pipa para o alto. A ladeira era íngreme. Ele corria com pernas magras e longas. A pipa amarela então ascendeu até o azul do céu e o menino parou de correr. Num barranco onde a grama verdejava e as margaridas floriam, ele olhou para o alto e contemplou seu brinquedo que dançava no céu de primavera.
Era como um sol. Era como uma lua. Não havia outro igual. Era o mais luminoso onde quer que estivesse. E soltou uma gargalhada que parecia um soluço de felicidade, enquanto as aves lhe faziam sombra no rosto e passavam das laranjeiras e limoeiros do grande quintal próximo, entre a linha de sua pipa, até desaparecerem nas colinas depois de duas casas.
Me disseram que ele era o pequeno Bob. Bom de ver brincar. Roubava limão e comia com sal. Chutava bola. Jogava pedra. Se escondia no mato. Vivia de joelho ralado. Fiquei no banco da rua, sentado, até que o sol subiu alto demais e o menino foi para casa almoçar. A senhora que me falou dele também foi almoçar.
Peguei minhas coisas debaixo do banco. Minha sacola de roupas e minha trouxa de comida, e fui embora da cidade, pela estrada mais verde que havia por ser atravessada. A floresta que havia à frente parecia mais fresca. Segui meu caminho ainda por muitos anos, sem jamais me esquecer da risada daquele menino. Era como meu filho.