sábado, 1 de dezembro de 2007

O Herege





"Sala da tortura, da purificação
Você será julgado pela Santa
Inquisição
Negra é sua alma como negra é sua magia
Você foi condenado pelo
crime de heresia..."
O Herege - Grimório
E tudo começou muitos anos atras quando ele disse no sermão que "o senhor perdoa a todos, pois sua misericórdia é divina. E para isso não depende de igrejas ou rezas, apenas de arrependimento e sinceridade". A venda de indulgências era notória na maioria das paróquias em todo continente, e as palavras do padre chegaram aos ouvidos do arcebispo, que não ficou nada satisfeito. Enviou então uma comissão de inquisidores para averiguar a história.
Chegaram de manhã, quando a neblina da noite ainda estava baixa nos campos. Eram sete homens. Quatro inquisidores e três cavaleiros templários. Cruzaram a cidade silenciosa, e chegaram à igreja. Chamaram pelo padre, cujo nome não posso revelar devido à ordem de esquecimento à qual ele foi condenado. O herege então abriu as portas do lugar. Já estava vestido, e preparava-se para sair quando chegaram os homens da igreja. Deixaram os cavalos no poste e entraram para conversar com o padre. Instruíram então o homem a mudar seus temas. "Não há interesse de ninguém em termos problemas na sua paróquia, padre. Não há razão para termos um distúrbio na ordem das coisas. Vá até seu povo e diga-lhes apenas o que está escrito no seu livro. O único caminho que salva é o da Santa Igreja, e nenhum outro." Saíram então de lá, com a promessa do padre de "não mentir para o povo, nem para a igreja".
Não passou um mês e meio e um dos espiões da igreja reportou reincidência na rebeldia do padre, desta vez no que se referia a existência de demônios. "Não há demônios na terra. Há apenas no coração dos homens. Devemos combater o demônio dentro de nós para tornar então a terra, num paraíso". Mais uma vez bateu de frente com a igreja e seus exorcismos mirabolantes e dramáticos, realizados muitas vezes em filhos epilépticos de homens ricos. Hoje chamaríamos a "marca de salvação" de lobotomia. Desta vez o arcebispo não se conteve e ordenou que uma comissão de inquisidores fosse formada para julgar o caso. Então rumaram para a paróquia do herege, uma comissão de vinte e cinco inquisidores, trinta templários e o próprio arcebispo, que desejava mais que tudo, ver o pecador se redimir em chamas.
Tomaram a igreja do padre, montaram uma reunião forjada e viram em suas cartas marcadas que "era preciso tirar a verdade do padre". Dois dias e duas noites na sala de tortura transformaram o padre em um farrapo humano. Não havia como ele não confessar que havia tido visões. Ele revelou onde estavam pergaminhos que seriam supostamente entregues a ele por anjos. Pergaminhos que ensinavam palavras novas aos homens. Palavras de libertação e verdade, que de forma alguma iam de encontro com a palavra do livro sagrado. Claro que uma vistoria mais minuciosa por parte dos inquisidores revelou serem os anjos servos de lúcifer e as palavras mentiras muito bem contadas pelo senhor das mentiras. Tendo então sido verificada e confirmada a relação do padre com o mal, seria administrada a penitência máxima: a purificação pelo fogo.
De dentro da igreja já se podia escutar a multidão gritando que era hora de queimar o herege. Foi então amarrado na pira dos penitentes. Lá ele expiaria seus pecados.
Olhava ainda para o céu, o excomungado, quando a tocha caiu entre os galhos molhados de óleo. O fogo subiu rápido pelo seu corpo, e se enredou por ele como uma serpente frenética. O povo gritou, zurrou e assobiou enquanto o herege queimou, até que nada mais restou além do cheiro horrendo de carne e osso queimados. A multidão então parou a algazarra, e murmuravam comentando o acontecido, enquanto voltavam para suas casas. Um novo padre seria designado para a paróquia e assumiria em menos de uma semana, se não houvesse a grande catástrofe.
No dia seguinte da queima do herege, uma chuva torrencial impediu que os inquisidores, o arcebispo e os templários saíssem da localidade. Choveu pesado e forte até a madrugada seguinte. Durante a tempestade não se podia ouvir nada além do uivo do vento. Não sei porque sobrevivi, nem como pereceram os outros nas outras casas, mas aonde eu estava foi tudo muito rápido. As portas e janelas estouraram e junto do grito do vento e da água da chuva, entraram figuras sombrias como anjos da morte, montados em cavalos de sombras e fogo. Os templários que estavam em minha casa foram cortados diante de meus olhos juvenis. Seus corpos dilacerados caiam sobre os tapetes um após o outro. Os cinco cavaleiros e minha família inteira pereceram em alguns segundos, diante de mim. Depois de destruir todos os vivos em minha casa, nem me olharam e saíram por onde vieram, tão rápido quanto chegaram.
Somente eu e o recém nascido da casa do vizinho vivemos para ver o dia seguinte. Não havíamos nem sido batizados ainda. Hoje sou um homem sem religião. Um escriba sem histórias. Caminho por um mundo irreal construído sobre mentiras e verdades tão frágeis quanto o papel que uso para escrever. Mas quando me perguntam sobre o fogo e a tempestade, eu sempre conto essa história... na esperança de algum dia encontrar alguém que saiba a verdade por trás do que vi acontecer na minha cidade natal. Ainda vejo os seres de sombra montados em fogo, quando estou sozinho. Eles nunca falam nada, nem olham para mim, mas estão sempre lá. Será que algum dia eles me dirão alguma coisa?

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