Ana Caroline estava andando tranqüilamente pelos arredores de sua casa. Não conseguia entender como veio parar no meio dessa floresta maldita. Num instante estava brincando perto do pé de romã e então, quando viu algum bichinho se mexendo nos arbustos e foi ver, caiu por um barranco. No momento seguinte estava nessa escura formação vegetal.
Suas pequenas mãos infantis bateram a sujeira de seu vestido branco. Ela era como um solitário floco de neve que cai pela noite escura, estando tão pura na floresta de trevas e desolação. Não era possível ver o céu, mas apenas a luz que era refletida pelas folhas e troncos. Uma luz opaca e estagnada tocava a névoa tênue que cobria a vista. Devia ser dia, mas estava escuro. Não era natural. Era estranho.
Sons de distâncias imprecisas ecoavam pelos troncos e galhos. Insetos de cores nunca vistas faziam as flores murchas das árvores parecerem ainda mais desbotadas. Uma árvore contorcida fez a menina lembrar de sua mãe. A planta tinha um tronco baixo e largo, como o corpo cansado da boa mãe da menina. Os galhos eram como os braços desesperados da velha senhora, que buscavam tanto o chão quanto alguma ajuda. Um dos galhos chegava a tocar o chão, enegrecido e retorcido tocando o chão de terra preta e úmida. O outro apontava para a menina, com galhos como dedos que buscam ajuda, ou talvez mandar a menina para longe da figura sombria que parecia precipitar-se sobre ela. Uma imensa árvore com feições macabras.
A floresta e suas formas deu pressa aos pequenos pés da menina, que correu por alguns minutos, saltando raízes expostas e desviando como podia de galhos baixos e traiçoeiros. Uma aranha observou de longe, caminhando lentamente até sua mosca.
Adiante, a menina vê um brilho estranho, como um metal ou uma reflexão de água cristalina sob um sol de entardecer. Ela vai inocentemente até próxima do ponto, mas no caminho escuta um sussurro áspero.
-Hei, garota. Não vá até lá.
Assustada com a silhueta bizarra do ser que proferiu tal conselho, a menina corre ainda mais rápido até a luz, e quando salta um arbusto mais baixo se vê em uma clareira.
As árvores formavam um círculo ao redor de uma espécie de jardim púrpura. Folhas e flores da cor funesta carpetavam o lugar. Borboletas negras voavam pelo ar, como que roubando a luz do céu, impedindo de se ver se era dia ou noite. E no centro desta clareira estava o guerreiro em uma armadura completa, sem quase nenhuma parte de seu corpo exposta. Era brilhante e sua luz não tinha explicação ou origem aparente. Refletia como que do nada. E na mão havia uma espada cruenta embebida em sangue negro.
A menina estancou ao se deparar com a cena, e o guerreiro ficou por instantes paralisado contemplando aquela garotinha de branco ali, parada diante dele. Mas apenas por instantes. Quase que imediatamente ele começou a correr na direção dela. Assustada, Caroline deu meia volta e desembestou-se a correr pelo mesmo caminho que veio. E a voz que lhe sussurrara um aviso a pouco, agora lhe acompanhava em sua carreira desesperada. Sob uma luz mais intensa foi possível contemplar as patas de cabra, o corpo peludo e os chifres do sátiro. E correndo continuou a advertir a menina.
-Eu lhe avisei para não irdes! Agora corramos. Temos de buscar os seres da floresta para que nos acudam.
As folhas farfalhavam aos vôos enquanto os dois se desembestaram pela mata. O sátiro então apontou “por aqui” para a menina e eles viraram por uma enorme rocha. Depararam-se então com nada menos que um imenso basilisco gigante, com sua língua bifurcada chicoteando o ar. A menina se assustou, mas a um sinal do sátiro a criatura deu passagem aos dois perseguidos e ficou de frente para a curva.
Instantes depois o cavaleiro surgiu na esquina da rocha e parou, surpreso com o tamanho do lagarto. Tinha qualquer coisa entre um metro e cinqüenta de altura estando nas quatro patas, por bons oito metros de comprimento da cabeça ao fim da cauda. Um corpo coberto de escamas cor de cobre e dois olhos como brasas formavam a imagem bestial do réptil rastejante.
E engajou-se em combate com a fera, o guerreiro brutal. Aproveitando a distração, o sátiro e a garotinha reiniciaram a fuga. Alguns metros depois ouviram um guinchar de morte vir da distância deixada para trás e concluiram que sua distração havia terminado. Ainda correram muito até que novamente o sátiro apontou outro “por ali” e dessa vez viraram a direita por um barranco gramado entre dois chorões centenários.
O guerreiro ferido na perna por uma boa dentada ainda tinha a força e determinação para passar pelo mesmo ponto poucos segundos depois dos fugitivos. E entre dois barrancos que o flanqueavam se viu cercado por pequenos répteis bípedes armados de lanças e facas. Do alto dos dois barrancos paralelos que davam às criaturas a generosa vantagem do nível geográfico superior, iniciaram ataques múltiplos e covardes à qualquer parte desprotegida da armadura do guerreiro, que urrava de dor. E entre urros e gritos selvagens foi tentando abater as criaturas, que pareciam não ter fim em sua quantidade. No fim do corredor sangrento que se formou, a menina se virava assustada antes de continuar acompanhando o sátiro em sua fuga alucinada.
Depois de abater as dezenas que até pareciam centenas de criaturas que visavam sua vida, o perseguidor implacável continuou sua empreitada.
Triste foi seu fim, instantes depois, quando a última das criaturas do trajeto traçado pelo sátiro surgiu diante de si. Um imenso gorila vermelho com um rosto desfigurado e imensas asas de morcego guardava a trilha na floresta. Encurralados por uma densa vegetação tanto o sátiro quanto a pobre Aninha contemplaram uma injusta batalha.
O primeiro golpe do guerreiro foi uma veloz cutilada contra o abdome do símio, que depois de um ruído de dor quase humano disparou um safanão contra a cabeça do guerreiro. O som da armadura amassando e dos ossos se despedaçando foi surdo. Um calafrio percorreu a espinha da menina, e até mesmo o sátiro pareceu sentir pena do infeliz espadachim. Quando estava se levantando recebeu um pisão sumário do primata descomunal e ali ficou caído enquanto recebia outra dezena de pisões em seu corpo sem vida.
Depois de exprimir os órgãos do guerreiro para fora de sua surrada armadura, o gorila se abaixou e começou a brincar com os restos do infeliz.
O sátiro então virou-se para a menina e disse:
-Você está na Floresta dos Desesperados, pequena Caroline. Não adianta se perguntar como veio parar aqui, como vai sair e nem como sei seu nome. Apenas me ouça atentamente. Jamais sairás daqui, mas tens a sorte de ter-me por guia. Jamais deixarei que algum destes ímpios lhe toque a fronte tão pura, ou sequer um de seus dourados fios de cabelo. Morrerei se preciso para evitar tal sacrilégio. Agora venha comigo. Devemos sair antes que o Taná´ri se dê por conta que você é humana. A coisa que eles mais odeiam é humano.
Desapareceram pela mata, então. E por tempos imemoriais os gnomos e fadas sussurram as histórias da Floresta que contam da menina-bruxa. Ela atrai os aventureiros e os perdidos que, na vã tentativa de salvá-la, conhecem os horrores indescritíveis ocultos nas sombras da Floresta dos Desesperados.