O carro enguiçou logo naquele trecho escuro de estrada entre uma cidade pequena e lugar nenhum. Não havia nada por ali. Nada visível. Era uma daquelas noites de lua nova que não se enxerga um palmo diante do nariz, e logo a bateria do carro tinha que arriar. O motorista olhou para o painel apagado e pela janela do carro. Lá fora estava escuro, e um leve reflexo de si mesmo embaralhava-se com a imagem de um campo negro e um céu de azul escuro como jamais viu.
Destrancou a porta e saiu. Depois de suspirar olhando para aquele nada que o cercava, andou até o porta-malas e o abriu. Lá dentro tinha, em algum lugar entre a chave de roda, algumas tralhas de praia e um estepe, uma lanterna. Talvez até mesmo a pilha não tivesse vazado ou esgotado de esperar pelo uso. Mexeu e mexeu na bagunça até que tocou em algo emborrachado. Escapou-lhe ao toque. Continuou então a busca, na direção em que sentiu a lanterna. Porém, um som na mata acabou por assustar-lhe e trazer sua atenção.
Parou gelado olhando fixo na direção do som. Mas não se repetiu. Apenas uma cigarra distante lembrava que era verão.
Voltou a buscar a lanterna. Foi então que encontrou. E assim que puxou, ouviu um som de algo deslizando e o peso da lanterna ficou mais leve. Só teve tempo de impedir que uma das duas pilhas grandes caísse do interior da lanterna. Amaldiçoou sua sorte. Agora tinha de encontrar o fundo da lanterna e uma pilha grande. Encontrou uma luva de couro, uma sombrinha imensa de praia (essa ele encontrou umas três vezes até que se encheu e jogou pra fora do porta-malas), uma sacola cheia de conchinhas e areia salgada, uma garrafa de plástico e enfim uma pilha grande. Colocou na lanterna. Deixou então a lanterna no bolso e buscou pelo fundo da lanterna usando as duas mãos.
Foi entre o som de uma garrafa de café solúvel batendo no cabo de madeira da maldita sombrinha e um saco vazio de batata frita sendo amassado que reparou no som da mata novamente. Paralisou de novo. Não é que dessa vez ouviu um som de respiração funda logo depois? As mãos pararam de buscar, tremendo dentro do porta-malas. Foi então que uma tampinha de plástico rolou até sua mão. Era o fundo da lanterna. Aquela peça traiçoeira reservou a melhor hora para se revelar. Parado e suando frio, pegou a peça com seus dedos tensos. Segurou firme e lentamente levou até o bolso. Ainda sem se virar atarraxou a parte que faltava em sua lanterna.
Este era o momento. Devia virar-se rápido contra seja-lá-o-que e lançar o feixe de luz contra sua presença. Imaginava ser um cachorro do mato, pelo tipo do som. Segurou a lanterna firme, encontrou o botão de ligar e num movimento desajeitado saltou rodando voltando-se e iluminando a presença que lhe causara temor.
Que surpresa... que inusitada surpresa. Era uma garota de uns dezessete anos, aproximadamente, de longos cabelos claros e completamente nua.
Assustado deixou o queixo cair, boquiaberto diante da delgada nudez da garota. E ela, ali desprovida de qualquer pudor, olhou para ele assustada também. A lanterna iluminou seu corpo branco até ofuscar a vista do motorista, acostumada às trevas daquela noite. Espremendo os olhos notou que um dos braços da garota estava se levantando para apontar para ele. Perguntou o que ela fazia ali, se estava ferida e coisas assim, mas ela ficou calada.
Seu impulso era de protegê-la. Tirou sua camiseta e vestiu a garota. Deixou-a sentar-se no banco do passageiro e perguntou seu nome. Ela ainda estava calada, até então. Foi quando os olhos do homem se acostumaram a claridade de sua pele que ele viu o quão linda era a garota. Novamente boquiaberto, ficou em silêncio, contemplando aquela pintura que era seu rosto. Uma aquarela... não, uma delicada escultura em gesso. Bah, não sabia definir. Era algo inédito. E sua voz se fez ouvir pela primeira vez. Foi um suspiro suave, como um gemido baixo de quem chorou muito mas está melhor. O homem não pode resistir aquele som tão frágil. Abraçou carinhosamente a garota, dizendo baixinho que estava tudo bem. Fez-lhe um carinho singelo, com um afeto que nem sabia que existia em seu coração, enquanto o cheiro suave da garota lhe impregnava as narinas sutilmente, como uma brisa que sopra numa sala abafada. Não imaginava melhor lugar para se estar que não ali, acalentando aquela figura angelical.
E o chorinho baixo dela foi se transformando em uma voz que dizia algo indefinível... talvez seu nome, ou talvez o que lhe afligia... Não sabia o homem ao certo. Ficou em absoluto silêncio, concentrado com cada célula de seu corpo a cada ruído que vinha da garota. Logo se viu como que ouvindo uma canção esquecida de sua infância. Emerso no mundo daquela voz. Sua vista e seu corpo relaxando profundamente, até um estado de contemplação como nunca experimentara. Então a voz se fez audível, ainda que de forma muito sutil, e disse que precisava gritar.
Na manhã seguinte os policiais encontraram o corpo de um homem, transfigurado de horror, perto de um carro parado e com poças de sangue perto de seus ouvidos. Nunca descobriram a causa de sua morte. Nunca descobriram sobre a sereia que assim como sua infeliz vítima, estava muito longe de casa.